O professor Jetro Coutinho responde as perguntas mais relevantes associadas ao tema Governança Corporativa nas Empresas Estatais à luz da Lei 13303, envolvendo:
- Estado na economia brasileira
- Empresas estatais
- Governança pública
- Constituição Federal 1988 artigo 173
- Lei das Estatais 13.303/2016
- Accountability
- Indicadores sociais e sustentabilidade
- Diretos dos acionistas minoritários
- Problema de agência setor público
- Gestão de empresas estatais
- Políticas públicas no Brasil
- Transparência e prestação de contas
- Desempenho das estatais brasileiras
- Intervenção estatal na economia
- Política pública e desenvolvimento econômico
O IBGP recomenda uma visita à página do Curso Governança Corporativa nas Empresas Estatais à luz da Lei 13.303/2016 do Professor Jetro Coutinho clicando da imagem abaixo.
Qual o principal desafio na definição do papel do Estado na economia brasileira, considerando diferentes perspectivas filosóficas e econômicas, e como essa indefinição impacta a criação e manutenção de empresas estatais?
A definição do papel do Estado na economia é um debate intrinsecamente complexo, permeado por diversas correntes filosóficas e econômicas, cada qual propondo uma visão particular sobre o escopo e a legitimidade da atuação governamental. Para uma escola econômica austríaca, por exemplo, a intervenção estatal deve ser mínima, com a alocação de recursos e a produção de bens e serviços sendo predominantemente direcionadas pelas forças de mercado. Nesse modelo, a eficiência é alcançada pela livre concorrência, e o Estado é visto como um obstáculo potencial à inovação e ao dinamismo econômico. Em contrapartida, a corrente keynesiana preconiza um papel mais ativo do Estado, especialmente em períodos de crise, para estimular a demanda agregada e promover o pleno emprego. Sob essa ótica, a intervenção estatal, por meio de investimentos públicos e políticas fiscais e monetárias, é fundamental para estabilizar a economia e mitigar flutuações cíclicas. No campo do direito administrativo, a visão tradicional concebe o Estado como o principal provedor de serviços públicos, enquanto a nova doutrina administrativista tende a focar no direito do cidadão ao serviço, independentemente de quem o preste, seja o Estado ou o setor privado. Essa multiplicidade de visões não é meramente teórica; ela se reflete diretamente na formulação de políticas públicas e, de forma acentuada, na justificação e na gestão das empresas estatais. A ausência de um consenso ou de uma diretriz clara sobre o "para que serve o Estado" pode levar a uma criação de estatais sem propósito definido, à manutenção de outras que já perderam sua relevância social ou econômica, ou ainda a uma flutuação constante de suas missões em função de governos e ideologias. Essa indefinição acarreta ineficiência na alocação de recursos, dificulta o estabelecimento de metas de desempenho claras e compromete a capacidade de planejamento de longo prazo dessas entidades. Para gestores públicos, essa ambiguidade representa um desafio constante, pois exige que operem em um ambiente onde os fundamentos de sua atuação podem ser questionados ou redefinidos a cada ciclo político, impactando diretamente a estabilidade e a eficácia das empresas estatais.
De que forma a evolução social e econômica influencia a percepção sobre o papel do Estado, e como essa mudança de paradigma justificou a transição de serviços antes estatais para a exploração privada no Brasil?
A percepção sobre o papel do Estado não é estática, mas sim um constructo social que se altera em função das transformações sociais, econômicas, tecnológicas e políticas de uma nação. No Brasil, essa dinâmica é evidente ao observarmos a trajetória de diversos setores que, em determinado momento, foram considerados prerrogativas estatais e, posteriormente, passaram a ser explorados pela iniciativa privada. A década de 1970, por exemplo, foi marcada por um forte protagonismo do Estado na economia, com grandes empresas estatais atuando em setores estratégicos como telecomunicações, energia e mineração. Entendia-se, naquele período, que a provisão desses serviços essenciais exigia o controle estatal para garantir a universalização e o desenvolvimento nacional. No entanto, a partir da década de 1990, impulsionado por um contexto global de reformas pró-mercado e por necessidades internas de ajuste fiscal e modernização, o Brasil iniciou um processo de desestatização e liberalização. A noção de que o setor privado poderia oferecer esses serviços com maior eficiência, inovação e sem os ônus do aparelho burocrático estatal ganhou força. A transição das linhas telefônicas de monopólio estatal para um mercado competitivo, e a crescente participação de empresas privadas na gestão de cemitérios, são exemplos paradigmáticos dessa mudança de paradigma. Anteriormente, a infraestrutura de telecomunicações era vista como um serviço público a ser provido diretamente pelo Estado, com o objetivo de conectar o país. Com o tempo, a percepção evoluiu para a ideia de que a competição entre operadores privados poderia resultar em melhor qualidade, menor custo e maior acesso para o cidadão, transformando um serviço essencial em um direito que pode ser atendido por diferentes provedores. Da mesma forma, a gestão de cemitérios, que antes era majoritariamente pública, passou a ser vista como um serviço passível de exploração privada, desde que regulada para garantir o interesse coletivo. Essa evolução social e econômica, que reflete as demandas e as prioridades de uma sociedade em constante mutação, justifica a reavaliação do escopo da atuação estatal e a abertura de setores à iniciativa privada. Para gestores, isso implica a necessidade de uma análise contínua da pertinência das empresas estatais, garantindo que sua existência se justifique por um imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo atual, e não por uma visão histórica obsoleta.
Explique como o Artigo 173 da Constituição Federal de 1988 estabelece os limites para a exploração direta da atividade econômica pelo Estado e qual a importância da legislação infraconstitucional nesse contexto.
O Artigo 173 da Constituição Federal de 1988 é um pilar fundamental na delimitação da atuação econômica do Estado brasileiro, estabelecendo um regime de subsidiariedade que restringe a exploração direta de atividade econômica a casos excepcionais. De acordo com o texto constitucional, a intervenção estatal nesse campo só é permitida quando estritamente necessária aos "imperativos da segurança nacional" ou a um "relevante interesse coletivo". Essa formulação não concede ao Estado um cheque em branco para atuar em qualquer segmento da economia; pelo contrário, impõe uma série de condicionantes que visam a coibir o gigantismo estatal e a promover um ambiente de maior previsibilidade e segurança jurídica para o setor privado. O conceito de "imperativos da segurança nacional" refere-se a setores ou atividades consideradas estratégicas para a soberania e a defesa do país, cuja gestão e controle não podem ser deixados exclusivamente à mercê das forças de mercado. Exemplos históricos incluem a produção de armamentos, a exploração de certos recursos naturais estratégicos ou o controle de infraestruturas críticas. Já o "relevante interesse coletivo" é uma cláusula mais ampla e flexível, que abrange a necessidade de suprir falhas de mercado, garantir a provisão de bens públicos ou promover o desenvolvimento regional e social, onde a iniciativa privada, por si só, não atuaria de forma satisfatória ou equitativa. No entanto, a Constituição não detalha o que constitui esses "imperativos" ou "interesses", transferindo essa responsabilidade para a legislação infraconstitucional. É por meio de leis específicas que esses conceitos são concretizados e atualizados, definindo quais setores ou atividades se enquadram nas exceções constitucionais e, consequentemente, justificam a criação ou manutenção de empresas estatais. Isso significa que, para cada empresa estatal, deve haver uma lei que a institua e que explicite os fundamentos de sua criação, alinhando-os aos princípios do Artigo 173. A importância da legislação infraconstitucional é, portanto, capital. Ela preenche a lacuna normativa da Constituição, traduzindo princípios gerais em regras específicas e adaptando a atuação estatal às necessidades contemporâneas. Além disso, ela confere a transparência e a legitimidade democrática necessárias, uma vez que a criação ou alteração dessas leis passa pelo debate e pela aprovação do Poder Legislativo. Para gestores, a compreensão aprofundada do Artigo 173 e de suas regulamentações é vital, pois baliza a legalidade e a pertinência de suas operações, exigindo uma justificativa contínua da função social ou estratégica da entidade que administram. A não observância desses preceitos pode levar a questionamentos jurídicos e à perda de legitimidade da empresa estatal.
Analise a natureza híbrida das empresas estatais, explicando como a coexistência da busca por lucro e a promoção de objetivos de política pública cria desafios únicos de gestão e governança.
A natureza híbrida das empresas estatais é, sem dúvida, o elemento central que define sua complexidade e singularidade no cenário organizacional. Ao contrário de uma corporação privada que tem como objetivo primário a maximização do valor para seus acionistas, ou de uma entidade pública pura (como uma autarquia) que se dedica exclusivamente à prestação de serviços sem fins lucrativos, a empresa estatal opera em um campo de tensão entre dois mandatos fundamentais: a eficiência econômica e a responsabilidade social. De um lado, ela é uma "empresa", o que implica a necessidade de operar com racionalidade econômica, buscando lucratividade, otimizando custos, gerando receitas e competindo em mercados, muitas vezes, globais. Indicadores financeiros como margem de lucro, retorno sobre investimento e liquidez são relevantes para avaliar sua performance. Espera-se que atue com agilidade, inovação e capacidade de adaptação, características associadas ao dinamismo do setor privado. De outro lado, ela é "estatal", ou seja, um instrumento do Estado para o cumprimento de políticas públicas e a promoção do interesse coletivo. Isso pode envolver a universalização de serviços (como o acesso à água potável ou à energia elétrica em regiões remotas), a manutenção de empregos, a estabilização de preços, o fomento ao desenvolvimento regional ou a atuação em setores estratégicos para a segurança nacional que não seriam atrativos para a iniciativa privada. Essas missões sociais frequentemente resultam em subsídios cruzados, investimentos em infraestrutura de baixo retorno financeiro e a adoção de tarifas sociais, o que pode comprometer sua saúde financeira.
Essa dualidade cria desafios de gestão e governança que são praticamente inexistentes em outras formas organizacionais. A principal dificuldade reside em como conciliar objetivos que, por vezes, são antagônicos. Como, por exemplo, uma empresa estatal de energia pode buscar a máxima rentabilidade para seus acionistas (incluindo o Estado) ao mesmo tempo em que garante o fornecimento de energia elétrica a custos acessíveis para populações de baixa renda, que representam um ônus financeiro? A ausência de uma clara ponderação entre o objetivo financeiro e o objetivo social por parte do controlador (o governo) é uma fonte constante de dilemas para os gestores. Essa indefinição pode levar a um ambiente de instabilidade, onde a estratégia da empresa é sujeita a mudanças em função de prioridades políticas, e onde a avaliação de desempenho se torna nebulosa, pois não há um critério único e transparente para medir o sucesso. A governança, nesse contexto, torna-se um elemento crítico para mediar essa dualidade. É por meio de estruturas e processos de governança robustos que se busca estabelecer os mecanismos para que os conselhos de administração e as diretorias consigam balancear esses dois mandatos, garantindo que a empresa cumpra sua função social sem comprometer sua sustentabilidade econômica. A ausência de uma governança forte expõe a empresa estatal a riscos de ineficiência, desvios de finalidade e perda de legitimidade, pois a dualidade inerente pode se transformar em um campo fértil para a má alocação de recursos e para a predominância de interesses particulares sobre o coletivo.
Por que os indicadores financeiros tradicionais são insuficientes para avaliar o desempenho integral de uma empresa estatal, e qual a importância de se desenvolver indicadores sociais e de sustentabilidade neste contexto?
Os indicadores financeiros tradicionais, como lucro líquido, margem de EBITDA, retorno sobre o patrimônio (ROE) e liquidez, são ferramentas essenciais para avaliar a saúde econômica e a eficiência operacional de qualquer organização que atue no mercado. No entanto, quando aplicados de forma exclusiva às empresas estatais, esses indicadores se mostram insuficientes e até mesmo enganosos para capturar o desempenho integral dessas entidades. A razão reside, novamente, na sua natureza híbrida: além de seu mandato econômico de gerar lucro e valor, as estatais possuem um mandato social e de política pública que, por sua própria definição, não se traduz integralmente em ganhos financeiros. Uma empresa estatal pode ter um desempenho financeiro modesto, ou até mesmo deficitário em certos exercícios, mas estar cumprindo de forma exemplar seu papel social, como a universalização de um serviço essencial em regiões de difícil acesso ou a manutenção de infraestruturas estratégicas que não seriam economicamente viáveis para o setor privado. Nesses casos, o valor gerado não é monetário, mas sim social e estratégico.
É nesse ponto que a necessidade de desenvolver e aplicar indicadores sociais e de sustentabilidade se torna imperativa. Indicadores sociais buscam mensurar o impacto das ações da empresa na qualidade de vida da população, na redução de desigualdades, na promoção da inclusão e no atendimento de necessidades básicas. Exemplos incluem o percentual da população atendida por serviços de saneamento básico, a redução da taxa de mortalidade infantil em áreas de atuação de empresas de saúde pública, o número de comunidades beneficiadas por programas de desenvolvimento regional ou a capacidade de uma empresa de infraestrutura de promover a conectividade em áreas remotas. Esses indicadores permitem quantificar o "valor público" gerado, algo que os balanços financeiros não são capazes de expressar. Além disso, a crescente preocupação global com a sustentabilidade (ambiental, social e de governança – ESG) reforça a urgência de métricas mais abrangentes. A incorporação de critérios ESG nos demonstrativos de desempenho permite avaliar como a empresa lida com seu impacto ambiental (por exemplo, emissões de carbono, uso de recursos naturais), sua responsabilidade social (relações com empregados, comunidade, fornecedores) e suas práticas de governança (transparência, ética). Para uma empresa estatal, esses aspectos são ainda mais críticos, pois ela é, por excelência, um instrumento da política de desenvolvimento sustentável de um país. A dificuldade em criar esses indicadores não minimiza sua importância; pelo contrário, sublinha o desafio de traduzir objetivos complexos em métricas claras e auditáveis. A busca por esses novos padrões, como demonstrado por iniciativas internacionais, é um caminho sem volta para a avaliação completa e justa do desempenho das empresas estatais, garantindo que não sejam julgadas apenas pela ótica do lucro, mas também pelo seu impacto efetivo na sociedade e no meio ambiente.
Explique a recomendação das boas práticas de governança sobre a "função de propriedade centralizada" do governo em relação às empresas estatais e por que a descentralização atual no Brasil é um problema.
As boas práticas de governança corporativa, especialmente as preconizadas por organizações como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), recomendam que o governo, na sua condição de acionista controlador das empresas estatais, exerça uma "função de propriedade centralizada". Essa abordagem significa que o Estado deveria ter uma visão holística e estratégica sobre o conjunto de suas empresas estatais, tratando-as como um portfólio de ativos. Dentro dessa perspectiva centralizada, o governo teria a responsabilidade de definir, para cada empresa estatal, de forma clara e formal, qual o equilíbrio esperado entre o objetivo financeiro (lucratividade, eficiência econômica) e o objetivo social (cumprimento de políticas públicas, provisão de serviços de interesse coletivo). Essa definição deveria ser um processo deliberado, embasado em análises de custo-benefício e alinhado às diretrizes estratégicas nacionais. O objetivo é evitar que cada estatal atue de forma isolada, ou que seus objetivos sejam definidos de maneira fragmentada por diferentes ministérios ou órgãos.
No Brasil, a realidade é frequentemente marcada pela descentralização dessa função de propriedade. Tradicionalmente, a gestão das empresas estatais federais tem sido influenciada de forma significativa pelos ministérios setoriais aos quais estão vinculadas. Por exemplo, uma estatal de infraestrutura pode ter suas prioridades moldadas pelo Ministério de Infraestrutura, enquanto uma estatal financeira estaria sob a influência do Ministério da Fazenda ou da Economia. Embora existam órgãos como a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (SEST), que buscam oferecer diretrizes e monitoramento, na prática, o principal ator na definição da agenda da estatal é muitas vezes o ministro de Estado responsável pela pasta setorial. Essa descentralização representa um problema significativo por várias razões. Primeiramente, pode levar a uma falta de coerência e sinergia entre as estatais, impedindo uma visão estratégica integrada do portfólio. Cada ministério pode ter seus próprios interesses e prioridades, que nem sempre se alinham com os objetivos macroeconômicos ou sociais do governo como um todo, ou com as necessidades da empresa como entidade econômica. Em segundo lugar, a descentralização pode resultar em decisões inconsistentes e na ausência de uma diretriz clara sobre a ponderação entre objetivos financeiros e sociais, o que gera incerteza para os gestores das estatais e dificulta a avaliação de desempenho. Finalmente, essa fragmentação torna o exercício do controle e da supervisão mais complexo, abrindo espaço para a predominância de interesses particulares ou políticos de curto prazo sobre o interesse estratégico de longo prazo do Estado como acionista. A centralização, portanto, visa a otimizar a gestão do portfólio de estatais, promovendo maior alinhamento, eficiência e transparência na consecução de seus múltiplos propósitos.
Qual a importância de o Estado definir e divulgar com clareza seu propósito como acionista das empresas estatais, e como a ausência dessa clareza pode impactar a percepção da sociedade e dos agentes econômicos?
Para que as empresas estatais operem com máxima eficácia e legitimidade, é fundamental que o Estado, na sua condição de acionista controlador (seja com 100% do capital, como nas empresas públicas, ou com a maioria do capital votante, como nas sociedades de economia mista), defina e divulgue com clareza seu propósito e seus objetivos para cada uma dessas entidades. Essa definição vai além de um simples estatuto social; ela deve explicitar por que o Estado mantém aquela empresa, quais os objetivos estratégicos que busca atingir por meio dela, como pretende ponderar o desempenho financeiro e social, quais os critérios de desempenho esperados, e qual o retorno (financeiro ou social) que se almeja. Essa clareza deve ser tornada pública, acessível a toda a sociedade e, em particular, aos agentes econômicos, como investidores, fornecedores e parceiros.
A ausência dessa clareza por parte do Estado como acionista controlador pode gerar uma série de impactos negativos. Primeiramente, cria um ambiente de incerteza e imprevisibilidade que desestimula investimentos privados e parcerias estratégicas. Investidores que consideram adquirir ações minoritárias em sociedades de economia mista, por exemplo, precisam compreender as regras do jogo e os objetivos do acionista majoritário para avaliar riscos e retornos. Se o propósito do Estado não é transparente, o risco percebido aumenta, encarecendo o acesso a capital ou afastando potenciais interessados. Em segundo lugar, a falta de uma diretriz clara impede que a própria gestão da empresa estatal alinhe suas estratégias e operações de forma eficaz. Sem saber qual o equilíbrio desejado entre lucro e missão social, a diretoria pode se ver em um dilema constante, sem um norte definido para suas decisões. Isso pode levar a oscilações na estratégia, com a empresa ora focando no desempenho financeiro, ora na função social, sem uma coerência de longo prazo. Em terceiro lugar, a percepção da sociedade sobre a legitimidade e a eficácia das estatais pode ser comprometida. Se os cidadãos não compreendem o propósito daquela empresa e os benefícios que ela deve gerar, sua existência pode ser questionada, gerando desconfiança e críticas. Finalmente, a falta de clareza do "propósito do Estado" pode ser confundida com o "propósito do governo de turno". Enquanto o Estado é uma entidade perene, o governo é temporário. Se os objetivos da estatal mudam drasticamente a cada alternância de poder, sem um embasamento estratégico de longo prazo, sua estabilidade e capacidade de planejamento são minadas. As boas práticas da OCDE ressaltam que um propósito claro e divulgado não apenas orienta a gestão, mas também fortalece a confiança e a legitimidade das empresas estatais, tornando-as mais resilientes e eficazes em seus múltiplos mandatos.
Detalhe os três pilares da accountability (transparência, prestação de contas e responsabilização) e explique como cada um contribui para a melhoria da gestão e da governança no setor público.
A accountability é um conceito multifacetado e fundamental para a governança eficaz no setor público, desdobrando-se em três pilares essenciais: transparência, prestação de contas e responsabilização. Juntos, eles formam um arcabouço que visa a promover a integridade, a eficiência e a legitimidade das instituições governamentais e das empresas estatais.
O primeiro pilar, a transparência, refere-se à disponibilidade e à inteligibilidade das informações sobre a atuação da entidade pública. Não se trata apenas de divulgar dados brutos, mas de tornar acessíveis e compreensíveis os processos decisórios, os objetivos estratégicos, as metas de desempenho e as formas como os recursos são alocados e utilizados. A transparência proativa, por exemplo, na divulgação das atas de conselhos administrativos e fiscais, com exceção de informações sensíveis protegidas por lei (como sigilos comerciais ou bancários, que devem ser mitigados mas não eliminam o dever de transparência para uma empresa pública), permite que a sociedade e os órgãos de controle compreendam o racional por trás das decisões. A Lei de Acesso à Informação (LAI) é um instrumento legal que reforça esse pilar, garantindo o direito do cidadão de acessar dados sobre a gestão pública. Ao aumentar o conhecimento do público sobre as operações da empresa, a transparência reduz a assimetria de informação entre os gestores (agentes) e a sociedade (principal), minimizando o potencial para conflitos de interesse e favorecendo um escrutínio mais efetivo.
O segundo pilar é a prestação de contas. Este transcende a mera submissão de balanços e relatórios a órgãos de controle externo, como os Tribunais de Contas. Seu público-alvo primordial é o cidadão. A prestação de contas implica que a entidade pública ou empresa estatal deve reportar de forma clara e regular como os recursos públicos foram utilizados, quais resultados foram alcançados em relação aos objetivos estabelecidos e como os mandatos sociais e financeiros foram cumpridos. É um exercício de justificação, onde a gestão demonstra que agiu de forma diligente e alinhada ao interesse público. Ao apresentar relatórios de desempenho, dados sobre a execução orçamentária e informações sobre o impacto social de suas ações, a empresa estatal permite que o cidadão, direta ou indiretamente (como cliente, contribuinte ou beneficiário), avalie sua eficácia e legitimidade. Essa prestação de contas fortalece a confiança da sociedade na gestão pública e cria um ciclo de retroalimentação que pode levar a melhorias contínuas.
O terceiro pilar, a responsabilização, vai além da punição por desvios ou má conduta. Embora a possibilidade de sanção seja um componente importante, a responsabilização implica, sobretudo, a promoção de um "espírito público" entre todos os agentes envolvidos na gestão da empresa estatal. Isso significa que diretores, conselheiros, gerentes e demais colaboradores devem gerenciar os recursos que não lhes pertencem com o mesmo (ou maior) zelo e cuidado que teriam com seu próprio patrimônio. É o compromisso de cada indivíduo com o melhor interesse da organização e da sociedade, tomando decisões que visem ao bem-estar coletivo e à geração de valor público. A responsabilização, portanto, não é apenas reativa (punição após o erro), mas proativa (cultura de integridade e diligência). Ao incutir esse senso de responsabilidade e pertencimento ao patrimônio público, a accountability completa seu ciclo, garantindo que as estruturas de governança não sejam apenas formalidades, mas mecanismos vivos que promovem a ética, a eficiência e a conformidade com o interesse social.
Qual o significado do "espírito público" na governança de empresas estatais e como ele se contrapõe a uma gestão focada apenas em interesses particulares?
O "espírito público" é um conceito de suma importância na governança e gestão de empresas estatais, atuando como um balizador ético e moral para as decisões e ações dos gestores. Em sua essência, o espírito público significa a internalização da consciência de que os recursos administrados por uma empresa estatal não são propriedade privada de seus dirigentes, mas sim bens do coletivo, da sociedade como um todo. Trata-se de uma orientação para o bem comum, uma dedicação à causa pública que transcende os interesses individuais, políticos ou setoriais. Isso implica que diretores, conselheiros, gerentes e todos os colaboradores devem conduzir suas atividades com um nível de zelo e diligência que seja, no mínimo, equivalente ao que dedicariam aos seus próprios negócios e patrimônios, senão superior, dada a natureza fiduciária da gestão de recursos alheios e a amplitude do impacto das decisões.
A manifestação prática do espírito público envolve a tomada de decisões pautadas na maximização do valor social, na eficiência da alocação de recursos públicos e na conformidade com os objetivos de política pública para os quais a estatal foi criada. Por exemplo, um gestor imbuído do espírito público priorizará a expansão do acesso a um serviço essencial para a população, mesmo que isso represente um desafio financeiro ou um menor retorno de curto prazo, se essa for a missão social da empresa. Ele buscará a otimização de processos e a redução de desperdícios, não apenas por metas de lucratividade, mas por entender que cada centavo economizado é um recurso do contribuinte que pode ser melhor aplicado em outras áreas de necessidade. Além disso, o espírito público se traduz na promoção da transparência e da prestação de contas, facilitando o escrutínio público e construindo a confiança da sociedade na gestão da empresa.
Em contrapartida, uma gestão que carece de espírito público tende a focar em interesses particulares ou escusos, o que pode se manifestar de diversas formas. Isso inclui a priorização de ganhos pessoais (como benefícios indevidos ou privilégios), a alocação de recursos em projetos que beneficiam apenas determinados grupos políticos ou empresariais, o uso da posição para obter vantagens em negociações, ou até mesmo a negligência e a ineficiência decorrentes da falta de comprometimento com o bem comum. Tais práticas não apenas corroem a legitimidade da empresa estatal, mas também geram desperdício de recursos, reduzem a qualidade dos serviços prestados e comprometem a capacidade da organização de cumprir sua missão. O espírito público, portanto, é um antídoto contra a captura do Estado por interesses privados e um catalisador para a governança robusta, pois alinha intrinsecamente os agentes aos propósitos do principal, que é a sociedade. Ele é um fator crítico para a construção de uma cultura organizacional que valoriza a ética, a responsabilidade e o compromisso com o interesse coletivo, elementos indispensáveis para a sustentabilidade e a eficácia das empresas estatais.
Aborde a questão do respeito aos direitos dos acionistas minoritários em sociedades de economia mista, destacando por que essa preocupação é ainda mais relevante em empresas estatais em comparação com as privadas.
O respeito aos direitos dos acionistas minoritários é um pilar fundamental da boa governança corporativa, aplicável a todas as sociedades anônimas, sejam elas privadas ou de economia mista. No entanto, em sociedades de economia mista — onde o Estado detém a maioria do capital votante e, portanto, o controle —, a preocupação com a proteção dos minoritários adquire uma relevância ainda maior e apresenta desafios singulares. Historicamente, mesmo em empresas privadas, o acionista controlador pode ter a capacidade de impor sua vontade em detrimento dos minoritários, seja em decisões estratégicas, na distribuição de dividendos ou em operações societárias. O risco de abuso de poder pelo majoritário é uma constante na teoria da agência.
Contudo, nas sociedades de economia mista, o acionista controlador é o próprio Estado, uma entidade com um poder e influência que superam em muito qualquer acionista controlador privado. O governo possui a prerrogativa de nomear a maioria dos membros do conselho de administração e da diretoria, definindo a agenda e o rumo da empresa. Essa influência não se restringe apenas à escolha de pessoas; estende-se à própria definição das políticas da empresa, que podem ser moldadas para servir à agenda governamental, mesmo que isso não maximize o retorno para todos os acionistas. Por exemplo, uma estatal pode ser compelida a praticar preços abaixo do mercado, a realizar investimentos em projetos de baixo retorno financeiro, mas de alto impacto social/político, ou a manter um quadro de pessoal maior do que o estritamente necessário por razões empregatícias. Essas decisões, embora possam cumprir uma função de política pública, podem diluir o valor para os acionistas minoritários, que investiram buscando retorno financeiro.
A dificuldade de um acionista minoritário individualmente se contrapor ao poder do Estado é imensa. Enquanto em uma empresa privada o minoritário pode buscar remédios legais ou se articular com outros minoritários para contestar decisões, a dimensão e a complexidade do aparato estatal tornam essa luta desproporcional. A preocupação internacional, como a manifestada pela OCDE, decorre desse desequilíbrio de poder. Se os direitos dos minoritários já são vulneráveis em empresas privadas, em estatais esse risco é amplificado, pois o controlador é um ente com múltiplos interesses (sociais, políticos, econômicos) que podem se sobrepor aos interesses meramente financeiros dos investidores minoritários. A governança robusta nessas sociedades é, portanto, essencial para mitigar esses riscos. Ela deve estabelecer mecanismos claros de proteção dos minoritários, como comitês independentes, regras rigorosas para transações com partes relacionadas, e a promoção da transparência e da equidade na divulgação de informações. Tais medidas são vitais não apenas para a proteção dos investidores, mas também para atrair capital privado, melhorar a percepção do mercado e fortalecer a legitimidade das sociedades de economia mista como instrumentos de desenvolvimento que conciliam interesses públicos e privados.
Defina o problema de agência no contexto das empresas estatais e explique como a assimetria de informação é um fator agravante para a ocorrência de conflitos de interesse.
O problema de agência é um conceito fundamental na teoria da governança corporativa, que descreve a relação contratual na qual uma parte, o "principal", delega a outra parte, o "agente", a tomada de decisões ou a execução de tarefas em seu nome. Nesse arranjo, o principal espera que o agente aja em seu melhor interesse. No entanto, o problema surge porque o agente, embora tenha sido contratado para servir ao principal, também possui seus próprios interesses, que nem sempre estão perfeitamente alinhados com os do principal. A divergência de interesses é a semente do conflito de agência.
No contexto das empresas estatais, essa dinâmica é particularmente complexa. O principal é, em última instância, a sociedade como um todo, detentora do patrimônio público e beneficiária dos serviços prestados. A sociedade delega a responsabilidade de gestão aos agentes, que, em uma cadeia de representação, são o governo (como acionista controlador), o conselho de administração e, finalmente, a diretoria executiva da empresa estatal. Cada elo dessa cadeia pode introduzir um potencial conflito de interesse. Por exemplo, a diretoria pode ter um interesse em maximizar benefícios de curto prazo para si, como bônus ou prestígio, em vez de focar na sustentabilidade de longo prazo ou na função social da empresa.
A assimetria de informação é um fator agravante crucial para o problema de agência e a eclosão de conflitos de interesse. Ela ocorre quando uma das partes (o agente) possui significativamente mais informações relevantes sobre a situação do que a outra parte (o principal). Em uma empresa estatal, a diretoria e os gestores têm acesso privilegiado a informações operacionais, financeiras, de mercado e estratégicas que a sociedade em geral – e muitas vezes até mesmo o governo controlador ou o conselho de administração – não possui de forma completa. O dia a dia da operação confere ao agente um conhecimento aprofundado dos meandros do negócio. Essa vantagem informacional pode ser explorada pelo agente para promover seus próprios interesses em detrimento dos do principal. Por exemplo, um gestor pode ocultar ou distorcer informações para justificar decisões que o beneficiam, mas que são prejudiciais à empresa ou à sociedade. Ele pode propor projetos que não são os mais eficientes, mas que geram oportunidades pessoais, ou manipular dados de desempenho para mascarar ineficiências. A dificuldade do principal em monitorar e verificar as ações do agente, devido à falta de informação completa, cria um terreno fértil para comportamentos oportunistas. A governança, nesse cenário, atua como um conjunto de mecanismos (como transparência e prestação de contas) que visam a reduzir essa assimetria de informação, empoderando o principal para que possa monitorar e alinhar os interesses do agente aos seus próprios, minimizando assim os conflitos e promovendo uma gestão mais íntegra e eficiente do patrimônio público.
Como as estruturas de governança, como o Conselho de Administração e mecanismos de transparência, atuam para resolver ou mitigar o problema de agência em empresas estatais?
As estruturas de governança desempenham um papel central na resolução ou mitigação do problema de agência em empresas estatais, atuando como um conjunto de freios e contrapesos projetados para alinhar os interesses dos agentes (gestores) aos do principal (a sociedade e o Estado). O objetivo primordial da governança é maximizar a probabilidade de que as decisões tomadas pelos agentes sejam consistentes com os objetivos estratégicos e sociais definidos pelo principal.
Um dos principais mecanismos é o Conselho de Administração (CA). Em empresas estatais, o CA é uma instância estratégica que representa o interesse do acionista controlador (o Estado) e, em última instância, da sociedade. Sua função é supervisionar a diretoria executiva, definir as diretrizes estratégicas e políticas da empresa, aprovar o orçamento e monitorar o desempenho. Ao ser composto por membros com diferentes expertises e, idealmente, com uma parcela de conselheiros independentes, o CA atua como um filtro, avaliando as propostas da diretoria e garantindo que as decisões estejam alinhadas com o mandato público da estatal. A existência de comitês auxiliares ao CA, como comitês de auditoria, risco e conformidade, fortalece ainda mais essa supervisão, adicionando camadas de controle e especialização.
Além das estruturas formais, os mecanismos de transparência são vitais. A transparência proativa e abrangente (não apenas de resultados, mas de processos decisórios) reduz a assimetria de informação, que é a raiz do problema de agência. Quando a empresa estatal divulga suas metas, estratégias, dados financeiros e operacionais de forma clara e acessível, ela fornece ao principal (sociedade e órgãos de controle) as ferramentas necessárias para monitorar as ações dos agentes. Essa visibilidade externa cria um incentivo para que os gestores ajam de forma ética e eficiente, pois suas ações estão sujeitas a escrutínio público. A Lei de Acesso à Informação (LAI) e as regulamentações específicas para estatais (como a Lei 13.303/2016) reforçam a obrigação de transparência, que se torna um pilar para a prestação de contas.
A prestação de contas completa o ciclo. Ao exigir que os agentes reportem regularmente e justifiquem suas ações e resultados, a governança força um alinhamento. Essa prestação não é apenas formal, para órgãos de controle, mas também substantiva, para a sociedade. Quando os resultados são publicamente avaliados em relação aos objetivos pré-definidos (financeiros e sociais), os agentes são incentivados a buscar a eficiência e a conformidade.
Finalmente, a responsabilização individual dos gestores por suas ações e omissões é um desdobramento crucial. A possibilidade de consequências, sejam elas de reputação, administrativas ou legais, cria um forte desincentivo a comportamentos oportunistas e à negligência. Em conjunto, essas estruturas e mecanismos de governança criam um ambiente onde os interesses da sociedade e do Estado são protegidos, e onde os agentes são incentivados a atuar com probidade e foco na geração de valor público. A robustez desse sistema é o que distingue uma boa governança, que vai além da mera formalidade de estruturas, garantindo seu propósito real de alinhar interesses.
Quais são os principais riscos que a má governança pode acarretar para as empresas estatais e para o setor público em geral? Cite e explique pelo menos três deles.
A má governança, ou a ausência de mecanismos eficazes de governança, representa uma ameaça significativa à eficácia e à integridade das empresas estatais e, por extensão, de todo o setor público. Ela cria um ambiente propício para a ocorrência de uma série de riscos que comprometem a capacidade dessas entidades de cumprir seus objetivos e gerar valor para a sociedade. Dentre os principais riscos, destacam-se:
- Inércia e Ineficácia Institucional: A má governança pode levar a um estado de estagnação ou ineficácia em que a empresa estatal perde seu propósito e relevância. Se não há uma clara definição de missão, uma supervisão efetiva do Conselho de Administração ou mecanismos de avaliação de desempenho, a empresa pode continuar existindo sem uma função social ou econômica justificável. Isso se manifesta quando uma estatal foi criada para um propósito específico (ex: segurança nacional ou interesse coletivo) que, com o tempo, deixou de ser relevante, mas a empresa continua operando. A falta de governança impede a reavaliação estratégica e a adaptação da entidade, resultando em ineficiência, desperdício de recursos públicos e uma percepção social de inutilidade. Essa inércia pode também advir da concentração de poder em poucas mãos, onde a inovação e a adaptação são sufocadas, e a entidade fica presa a práticas obsoletas.
- Cometimento de Irregularidades e Corrupção: Este é um dos riscos mais graves e visíveis da má governança. A ausência de controles internos robustos, de transparência nas decisões e de mecanismos eficazes de fiscalização e responsabilização cria um terreno fértil para desvios de conduta, fraudes e corrupção. Quando o poder decisório está concentrado em uma única pessoa ou em um pequeno grupo, sem os contrapesos de um conselho ativo, de comitês independentes ou de auditorias externas regulares, o risco de abuso de poder aumenta exponencialmente. Gestores podem usar a assimetria de informação e a falta de escrutínio para promover interesses particulares (sejam financeiros, políticos ou de prestígio) em detrimento do interesse público. Isso pode se manifestar em contratos superfaturados, licitações direcionadas, nomeações políticas sem qualificação técnica, ou apropriação indevida de recursos. Uma governança forte, ao equilibrar o poder, promover a transparência e estabelecer canais de denúncia e mecanismos de responsabilização, atua como um poderoso inibidor de irregularidades, protegendo a integridade do patrimônio público.
- Ineficiência e Antieconomicidade: A má governança frequentemente resulta em operações ineficientes e em decisões antieconômicas, gerando desperdício de recursos e falha em entregar os benefícios esperados. A ineficiência ocorre quando a empresa gasta mais do que o necessário para produzir um determinado bem ou serviço, seja por falta de otimização de processos, gestão inadequada de custos ou alocação ineficaz de pessoal. A antieconomicidade, por sua vez, refere-se à escolha de alternativas que não são as mais adequadas ou vantajosas para a entidade, mesmo quando outras opções mais eficientes e estratégicas estavam disponíveis. Isso pode se manifestar no lançamento de produtos ou serviços que não têm aceitação no mercado, na realização de investimentos em projetos que não geram o retorno esperado ou na adoção de tecnologias obsoletas. Essas decisões podem ser influenciadas por pressões políticas, interesses particulares ou simplesmente pela ausência de um processo decisório racional e baseado em dados. Em resumo, a má governança impede que a empresa estatal opere com a diligência e a racionalidade que o uso do dinheiro público exige, transformando-se em um fardo para o contribuinte e um obstáculo ao desenvolvimento.
A Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) foi um marco regulatório para a governança das empresas estatais brasileiras. Explique como essa legislação visa a fortalecer a governança e quais são os seus principais objetivos a partir da perspectiva de mitigação de riscos.
A Lei nº 13.303/2016, conhecida como Lei das Estatais, representa um divisor de águas na governança das empresas estatais brasileiras, sendo promulgada com o objetivo primordial de fortalecer a gestão dessas entidades e mitigar uma série de riscos históricos que as assombravam. A legislação surge em um contexto de crescentes demandas por maior transparência, eficiência e probidade no setor público, impulsionada por escândalos e pela percepção de má gestão em diversas estatais. Seu propósito central é criar um arcabouço normativo que alinhe os interesses dos agentes (gestores) aos do principal (a sociedade e o Estado), garantindo que as empresas estatais cumpram sua dupla missão de forma mais eficaz e responsável.
A Lei 13.303/2016 visa a fortalecer a governança por meio de diversos mecanismos e requisitos. Um dos pilares é o aprimoramento da composição e do funcionamento dos Conselhos de Administração e Fiscal. A lei estabelece critérios mais rigorosos para a indicação de conselheiros e diretores, exigindo reputação ilibada, notório conhecimento e, em muitos casos, experiência profissional prévia compatível. Além disso, determina a obrigatoriedade de conselheiros independentes, que não possuam vínculos com a administração ou o acionista controlador, garantindo maior autonomia e capacidade de fiscalização. A lei também prevê a criação de comitês estatutários, como o Comitê de Auditoria Estatutário, com competências e responsabilidades bem definidas, que atuam como órgãos de apoio ao Conselho de Administração, fortalecendo as funções de controle interno e gestão de riscos.
Outro objetivo crucial da lei é o aumento da transparência e da prestação de contas. A legislação exige a divulgação ampla de informações sobre a empresa, seus resultados financeiros e sociais, suas estratégias e os processos de tomada de decisão. Isso inclui a publicidade de dados sobre contratações, receitas e despesas, o que contribui para reduzir a assimetria de informação entre a gestão e a sociedade, e facilita o escrutínio público e dos órgãos de controle. A Lei das Estatais também introduz um regime mais rígido de licitações e contratos, buscando maior eficiência e coibindo práticas de favorecimento e corrupção. O foco em procedimentos mais formais e transparentes visa a garantir que as aquisições de bens e serviços sejam feitas no melhor interesse da empresa e da sociedade.
Do ponto de vista da mitigação de riscos, a Lei 13.303/2016 atua em diversas frentes:
- Combate à Concentração de Poder e Abuso: Ao estabelecer critérios de independência para conselheiros, criar comitês e definir alçadas de decisão, a lei busca diluir o poder e introduzir múltiplos pontos de controle, reduzindo o risco de que decisões sejam tomadas por interesses particulares ou políticos, em vez do interesse da empresa e da sociedade. Isso dificulta a ocorrência de irregularidades e corrupção.
- Melhoria da Eficiência e Antieconomicidade: Ao exigir processos de planejamento estratégico, gestão de riscos e avaliação de desempenho, a lei incentiva a racionalidade econômica e a busca pela eficiência. A transparência na tomada de decisão e a exigência de justificativas para investimentos e operações ajudam a evitar decisões antieconômicas, que resultam em desperdício de recursos.
- Fortalecimento do Espírito Público e da Responsabilização: Embora não possa legislar sobre a moralidade, a lei cria um ambiente onde a responsabilização é mais palpável. A clareza de papéis e responsabilidades, os requisitos de conformidade e a maior visibilidade das ações incentivam os gestores a atuar com maior diligência e foco no interesse coletivo, cientes de que suas ações serão escrutinadas e, se necessário, sancionadas.
Em suma, a Lei das Estatais não é apenas um conjunto de regras; é um instrumento de transformação da cultura de gestão, visando a que as empresas estatais se tornem modelos de governança, capazes de gerar valor público de forma sustentável e transparente.
Analise a afirmação de Peter Drucker sobre a evolução da desordem, atrito e mau desempenho em organizações que não possuem boa governança, relacionando-a com a realidade das empresas estatais brasileiras.
A afirmação de Peter Drucker, "As únicas coisas que evoluem por vontade própria em uma organização são a desordem, o atrito e o mau desempenho", é uma poderosa síntese sobre a importância da governança. Essa máxima ressalta que, na ausência de estruturas, processos e mecanismos deliberados para direcionar e controlar uma organização, a tendência natural é a degradação. A ordem, a harmonia e o bom desempenho não são estados espontâneos; eles são o resultado de um esforço contínuo e de um sistema de governança bem estabelecido que alinha interesses e comportamentos.
Essa perspectiva de Drucker é profundamente relevante para a realidade das empresas estatais brasileiras. Devido à sua natureza híbrida (com a coexistência de objetivos financeiros e sociais) e à complexa cadeia de agência (sociedade -> governo -> conselho -> diretoria), as estatais são particularmente suscetíveis à desordem, ao atrito e ao mau desempenho quando a governança é deficiente.
- Desordem: Sem uma governança clara, a definição de prioridades pode se tornar caótica. A ausência de um propósito bem articulado por parte do Estado como acionista pode levar a mudanças de rumo a cada nova gestão ou a cada ministro, gerando inconsistência estratégica. Essa falta de clareza na orientação do principal (sociedade/Estado) para o agente (gestores) resulta em um ambiente onde as direções são conflitantes, os processos são mal definidos e a disciplina organizacional se deteriora. Projetos são iniciados e abandonados, recursos são alocados sem planejamento adequado, e a empresa opera de forma errática, sem um foco claro na geração de valor público.
- Atrito: O atrito em uma organização sem boa governança se manifesta como conflitos internos e externos. Internamente, a ausência de alinhamento entre os interesses dos diferentes agentes (conselho, diretoria, áreas operacionais) ou entre o mandato social e o financeiro gera disputas e impasses. Cada setor ou indivíduo pode puxar a empresa para sua própria agenda, criando resistências e sabotagens. Externamente, o atrito surge na relação com a sociedade e com os órgãos de controle. A falta de transparência e prestação de contas, por exemplo, leva à desconfiança, críticas e a intervenções reativas dos órgãos fiscalizadores, que muitas vezes resultam em investigações e processos que desviam a atenção e os recursos da empresa de sua missão principal. A ausência de respeito aos direitos dos minoritários em sociedades de economia mista também gera atrito com investidores e litígios.
- Mau Desempenho: A desordem e o atrito culminam inevitavelmente no mau desempenho. Sem um alinhamento eficaz de interesses, os recursos (humanos, financeiros, tecnológicos) são subutilizados ou mal aplicados. A ineficiência se instala, os custos aumentam, a qualidade dos serviços cai e os objetivos estratégicos não são alcançados. O mau desempenho se reflete na incapacidade de gerar lucro (se for o caso), de cumprir metas sociais (como universalização de serviços) e de promover o desenvolvimento. A ausência de mecanismos de responsabilização permite que a má gestão persista sem as devidas correções, criando um ciclo vicioso de deterioração.
Em suma, a Lei 13.303/2016 e as demais iniciativas de governança para estatais no Brasil são tentativas de contrariar essa "vontade própria" da desordem. Ao instituir estruturas, processos e mecanismos de transparência, prestação de contas e responsabilização, busca-se alinhar o interesse do agente ao interesse do principal. A meta é construir um ambiente onde a organização seja deliberadamente direcionada para a ordem, a sinergia e o alto desempenho, garantindo que as empresas estatais sirvam de fato ao propósito de gerar valor para a sociedade brasileira. Sem essa intervenção proativa da governança, o destino natural, conforme Drucker, seria a progressiva deterioração.